Confesso que me escandaliza o fato de termos que matar para comer (ou mandar matar, o que nos livra do remorso). Para sobreviver, todo animal ao nosso redor tem que ser anoréxico. Pegou um corpinho, a gente começa a sorrir para ele de maneira suspeita.
Se as galinhas soubessem ler, gelariam ao ver anúncios como: “Frango abatido na hora”.
- São os nossos filhos, diriam, com lágrimas nos olhos.
Assim que a loja (“Boutique de frango”!) fosse aberta, entraria a freguesa à cata de novidades, riso cruel para os frangos. E ainda lhes exigiria o sangue para o sagrado molho pardo.
Pensem num boi, no restaurante, ouvindo o cliente pedir ao garçom:
- Quero meu bife sangrando.
Se o boi soubesse que, retirado do pasto para entrar num caminhão, está selando seu destino, diria para o boiadeiro:
- Dê o endereço do matadouro, que eu vou a pé mesmo.
E, claro, desapareceria no mato, mesmo correndo o risco de ser comido por outro bicho.
Os bois espertos comeriam ervas emagrecedoras para viverem mais.
Humor negro: porco esclarecendo, ao mostrar para o colega uma rodilha de linguiça:
- Depois de moídos, entramos por essa tripa. No supermercado chamam isso de embutido.
A porcada riria até chorar.
Deve ser do primeiro porco que viu alguém vindo com a faca pro seu lado a frase:
- É agora que a porca torce o rabo.
É triste ter que comer para sobreviver, tanto tempo após termos deixado a irracionalidade. Inventamos a ética, a filosofia, a psicologia, a civilização, a cidadania (bois e porcos, por serem rurais, não têm o direito de serem cidadãos?), mas não conseguimos nos livrar do magarefe, do pescador e até do verdureiro.
Sim, pois estudiosos já concluíram que tudo no mundo tem sentimentos, dores e angústias, a começar por árvores, verduras e legumes. Daí que não tem sentido e constitui das maiores crueldades uma salada de tomate, alface, pepino, a salsinha correndo por fora.
Das duas, uma: ou está certo o urso, que consegue viver de mel, o que não mata ninguém, ou o certo fosse como antigamente, quando nos comíamos uns aos outros. Pelo menos era digno: a lei do mais forte, quando todos os que hoje comiam poderiam, amanhã, experimentar o reverso da medalha. Por isso as mulheres fugiam às léguas dos homens que, nas calçadas de então, lhes diziam:
- Gostosa.
E os homens cortavam caminho para evitar os fortões vestidos de couro que os elogiavam:
- Que mocotó.
A lei do mais forte implicava que o amigo de hoje podia ser o almoço de amanhã. Não havia, aliás, amizades e sim interesses.
- Tô cultivando o cara, segredavam os mais políticos.
Os magros só seriam descobertos em tempo de crise (daí a expressão “vacas magras”).
Tem a ver, denominar nosso ciclo de sobrevivência física de “cadeia alimentar”.
É que estamos realmente presos. E o carcereiro fugiu e jogou a chave fora.
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